"Aguentar a ditadura foi uma espécie de pecado original"
Um romance admirável
com personagens que não são para admirar. Catarina Homem Marques seguiu a
sombra do protagonista de O Dia de Amanhã
e falou com o escritor Ignácio Martínez de Pisón.
*****
Nos dias em que o Barça ganha e Messi marca golos – que são
quase todos – a felicidade de uma cidade inteira interfere com a vida de
Ignácio Martínez de Pisón. Interfere mesmo no sentido de irritar. “Vivo na
cidade onde está a melhor equipa do mundo da actualidade e onde joga o melhor
jogador da História do futebol. E tenho de viver com esta euforia logo na altura
em que o Zaragoza atravessa uma das suas piores fases”, conta o escritor
espanhol.
Já não faz mal que um escritor, mesmo que seja um dos mais
respeitados do seu país, confesse os seus sofrimentos futebolísticos. “Já não
temos de disfarçar para parecermos mais intelectuais.” E para um escritor como
Martínez de Pisón, acaba até por ser mais produtivo estar do lado do clube que
perde, aquele dos feitos menores, mesmo que no dia-a-dia isso lhe pareça mais
doloroso. “Como escritor, interessa-me mais um golo marcado num campo de terra
batida do que a história dos grandes triunfadores. Interessa-me mais a vida de
um cabeleireiro do que a vida de Van Gogh.” Tal como em O Dia de Amanhã, livro publicado agora em Portugal, lhe interessa
mais pôr-nos a conhecer uma época e um país através dos olhos da secretária que
conseguiu tirar a carta de condução ou do rapaz que trabalha como vendedor
porta a porta. “Nunca tenho protagonistas admiráveis e neste romance ninguém é
admirável. Gosto das pessoas que posso tratar de igual para igual, que podemos
escolher amar ou odiar.”
Menos admirável que Justo Gil era difícil de arranjar. No
início da história até pode parecer o contrário, tendo em conta que o
conhecemos no momento em que ele chega a Barcelona sem nada, a carregar ao colo
a mãe doente de quem cuida com esmero. Mas isso é só o início. “Queria contar a
história de alguém que se degrada, mesmo que no início procure o mesmo que
todos nós: prosperar na vida. Quando vejo um sem-abrigo na rua penso sempre
sobre isso, porque aquela pessoa não foi sempre um sem-abrigo.”
Não por acaso, a degradação moral e ética de Justo Gil tem
como pano de fundo a ditadura de Franco. “Se fosse hoje em dia, ele até podia
ser apenas um self made man, uma
daquelas pessoas que são apresentadas na televisão como grandes
empreendedores.” Naqueles tempos, em plena ditadura, de golpe em golpe e de
erro em erro, Justo tornou-se um bufo, um delator profissional, a metáfora
perfeita para a degradação de um regime, o que deu oportunidade a Martínez de
Pisón para abordar um tema pouco comum em literatura: a polícia política de
Franco.
“Quando acabou a guerra civil e Franco tomou o poder,
começou um discurso com a expressão ‘no dia de hoje’. É por isso que eu falo do
dia de amanhã, essa expressão que se refere a um futuro incerto, muito
necessário para um país que viveu demasiado tempo nesse dia de hoje que era o
franquismo.” Um dia de hoje que Ignácio Martínez de Pisón faz questão de
retratar num quadro muito mais aberto do que a simples história de Justo. É esse
o grande truque do livro: em nenhum momento ouvimos Justo falar. Ouvimos
pessoas como Carme Román, a mulher que trabalhava numa tipografia e que ele
amou, ou Pascual Ortega, o notário com quem saiu algumas vezes em lazer.
Pessoas comuns que parecem responder a uma investigação e que nos oferecem
ligações directas a outros tempos. “Queria essa proximidade que o jornalismo
oferece, o livro tem um tom quase documental. Transmite uma sensação de verdade
que muitas vezes os romances de grande elaboração literária não conseguem
oferecer.”
Justo não existiu mas existiram outros como ele. O mesmo
vale para todas estas pessoas que falam sobre ele e sobre as suas vidas.
“Quando era um escritor jovem o que menos queria era ser um escritor realista.
Agora, o que me interessa mais é a realidade.” Esta realidade que aqui nos abre
um caminho sólido e transparente por uma História maior. “A diferença entre
Portugal e Espanha é que Portugal acaba com a ditadura por iniciativa própria.
A nossa acaba por extinção. Apesar de ter sido uma ditadura muito sangrenta, as
pessoas aguentaram e muitas só se tornaram democratas um dia depois de Franco
morrer. Isso é uma espécie de Pecado Original.” Uma sombra que se desvenda a
par com a de Justo em equilíbrio perfeito, mesmo que agora outra “falha no
sistema” tenha deixado os espanhóis à procura de um novo “botão de reset”.
(Texto publicado na Time Out Lisboa Nº 284)
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